Leandro Quadros

Os mortos tremem debaixo das águas? (Jó 26:5)

Extraído do livro: Leia e Compreenda Melhor a Bíblia, de Pedro Apolinário.

“Os mortos tremem debaixo das águas, com os seus moradores”.

Os tradutores da Sociedade Bíblica Brasileira fizeram um trabalho cujo valor não pode ser subestimado.Porém, apesar da cultura, conhecimento da técnica de traduzir e consciência da responsabilidade que pesava sobre eles, cometeram alguns deslizes ao interpretarem alguns versos de acordo com crenças não defensáveis pelas Escrituras. Referimo-nos à Almeida Edição Revista e Atualizada no Brasil, inegavelmente uma das melhores traduções entre todas as que se fizeram no mundo.

Sua linguagem é bastante correta, e isso graças a seu secretário, professor Antônio de Campos Gonçalves, um dos maiores vernaculistas que este país já produziu. Apesar de seu extremo cuidado com a gramática, no entanto, pessoalmente discordo de certos passos, como os seguintes:

1º) Aprendi, por isso ensinei, que as conjunções subordinativas levam o verbo para o subjuntivo. Exemplo: Quero que faças. Ele morreu a fim de que fôssemos salvos.

Em Salmos 92:7, lemos: “ainda que os ímpios brotam como a erva, e florescem todos os que praticam a iniquidade…” seria melhor: “ainda que os ímpios brotem como a erva e floresçam todos os que praticam a iniquidade”.

2º) Em Efésios 1:22 e 4:15, a comissão revisora não foi feliz em apresentar a Cristo como “o” cabeça da igreja.

Os dicionários apresentam “o cabeça” como chefe, mas apenas permitido em sentido depreciativo, pejorativo. “O cabeça da sedição”, “o cabeça do bando”. Em Isaías 7:8-9, dois reis são denominados de “o cabeça”. Rezim – “o cabeça de Damasco”, e Peca, filho de Remalias, “o cabeça de Samaria”. Para estes reis a designação está bem, mas Jesus não pode ser senão “a” cabeça da igreja. Em Colossenses 1:18, Jesus é apresentado com propriedade como “a cabeça” da igreja. Não se justifica esta diferença com Efésios 1:22 e 4:15.

3º) Desde o início deste século, o insigne gramático Eduardo Carlos Pereira nos ensinou sobre o apropriado uso do possessivo. Devemos distinguir: purifica, Senhor, o nosso coração, mas guia os nossos pés. Guarda, Senhor, a nossa boca e os nossos ouvidos.

Em Colossenses 3:15-16; 4:8 seria preferível “vosso” coração em vez de “vossos” corações, como aparece na Edição Revista e Atualizada no Brasil.

Após esta digressão gramatical, passemos ao problema de tradução de Jó 26:5.

Os adventistas, escudados em inamovíveis declarações das Escrituras, creem na inconsciência durante a morte, como provam as seguintes passagens: Eclesiastes 9:5-6; Salmos 146:3-4; João 5:8, 28-29.

Creem também na doutrina escatológica definida em teologia como “extincionista”, ou do aniquilamento para os ímpios, que serão reduzidos a cinzas, o mesmo acontecendo a Satanás e aos seus anjos.

Infelizmente os tradutores da Sociedade Bíblica do Brasil não traduziram bem Jó 26:5 – “As almas dos mortos tremem debaixo das águas com seus habitantes” (Almeida Edição Revista e Atualizada no Brasil).

Pessoas não esclarecidas quanto aos problemas de tradução tomam da Bíblia esta passagem, e passam a proclamar que o texto bíblico ensina a imortalidade da alma. É uma verdade conhecida, até por pessoas medianamente cultas, que a palavra para “alma” em hebraico é “nephesh“. Esta palavra aparece pela primeira vez na Bíblia em Gênesis 2:7, onde a alma, ou criatura vivente, é o resultado do corpo com o fôlego de vida soprado por Deus.

Ao morrer a pessoa, temos um processo inverso: o espírito sai ou volta para Deus, e o corpo vai para a terra, desaparecendo a alma vivente (Eclesiastes 12:7).

Assista ao seminário completo sobre a Imortalidade da Alma:

Até um leigo, com o auxílio de uma concordância analítica, verificará que o hebraico “nephesh” e o grego “psiquê” não aparecem uma única vez com a ideia de eternidade ou de imortalidade. Ainda mais, peçamos aos imortalistas as evidências de que estas palavras originais fazem alusão à natureza cognoscitiva e imaterial depois da morte. Eles não as apresentarão porque elas inexistem. A Bíblia não apresenta nenhuma citação que justifique a ideia da sobrevivência da alma na morte do homem como reconhecem eminentes exegetas e o mais acatado dicionário hebraico – Gesênio. Como igreja apenas admitimos e ensinamos aquilo que se encontra na Bíblia. Repetimos: Não cremos porque não se encontra na Bíblia que o homem tenha uma alma ou um espírito imortal. A imortalidade, segundo a Bíblia é um atributo exclusivo de Deus (1Timóteo 6:16).

Um de nossos opositores, o Sr. Walter Martin, cita Filipenses 1:23 como evidência de que a alma ou o espírito, significando personalidade consciente, ao sair do corpo por ocasião da morte dirige-se para a presença de Deus ou para o lugar de castigo. Como ponto de partida, mencionemos o fato de que esta passagem nem sequer emprega as palavras alma ou espírito. (O comentário sobre Filipenses 1:23 aparece em nosso livro “Explicação de Textos Difíceis da Bíblia” – clique aqui).

A palavra “nephesh“, que pode ser traduzida por mais de 40 palavras em português, mesmo que aparecesse no original de Jó 26:5, jamais poderia ser traduzida por alma dos mortos.

Que vocábulo hebraico se encontra nesta passagem e quais os seus significados? A palavra é “rephaim“, e os léxicos hebraicos lhe atribuem os seguintes sentidos:

a) gigantes (que habitavam a Palestina);

b) sombras;

c) girafas;

d) elefantes;

e) nome de um vale perto de Jerusalém;

f) mortos.

O que não encontramos em nenhum dicionário hebraico é “rephaim” com o significado de “almas dos mortos”.

Rephaim aparece transliterada 17 vezes na Bíblia para designar o vale (Josué 15:8;18:16: 2Samuel 5:18, 22, etc.) ou os gigantes (Gênesis 14:5; 15:20; Deuteronômio 2:11 e 20).

Sobre esta palavra, afirma o Comentário Bíblico Adventista, vol. 3, pág. 637: “A derivação da palavra é incerta, e não se sabe como ela poderia se referir, ao mesmo tempo, a uma raça de pessoas e aos mortos. Talvez o termo refa’im, que designa uma raça, seja derivado de uma raiz diferente do termo homógrafo que designa os mortos. Alguns relacionaram as duas ideias observando que, como raça, os refa’im haviam sido extintos e tinham perdido o poder. Seus orgulhosos representantes jaziam prostrados no she’ol e a recordação deles se tornara vaga e obscura. Daí se tornarem uma alusão adequada dos mortos”.

Como bem declarou Arnaldo B. Christianini: “De modo nenhum, porém, há, nas línguas originais na Bíblia a expressão ‘alma dos mortos’, e esta infelicíssima ‘tradução’ de Jó 26:5 não passou de uma interpretação grosseira (eu usaria o adjetivo tendenciosa), a revelar o pendor da teologia imortalista dos tradutores” (Revista Adventista, setembro de 1970, pág. 11).

O cotejo entre várias traduções da Bíblia é útil para concluir qual o significado do vocábulo “rephaim“.

a) A Septuaginta, a Vulgata, Matos Soares e outros traduzem: “os gigantes gemem debaixo das águas”.

b) A Bíblia de Jerusalém apresenta: “As sombras tremem debaixo da terra”.

c) Na tradução inglesa The New English Bible, lemos: “As sombras se contorcem de medo”.

d) Os tradutores da Trinitária escolheram a expressão: “estremecem os defuntos”.

e) Almeida Edição Revista e Corrigida: “os mortos tremem debaixo das águas”.

f) A Revised Standard Version consigna: “As sombras tremem embaixo, as águas e os seus habitantes”.

Outras traduções poderiam ser apresentadas, porém, as mencionadas são suficientes para se chegar à seguinte conclusão: Os tradutores da Sociedade Bíblica não foram nada felizes ao verterem esta passagem para o português.

Sérgio Quevedo, ex-estudante de Teologia em nossa Faculdade, incansável pesquisador de problemas exegéticos, estudou Jó 26:5 sob o título: Suposto Embaraço na Doutrina da Imortalidade.

Destaco de sua análise as citações seguintes:

1º) “O vocábulo rephaim sucede 8 vezes no TM com a acepção capital de ‘sombras’, conforme Gesenius, Driver e Koeher, os três mais autorizados léxicos da língua semítica vetero-testamentária, conferindo com a monumental concordância Wigran.

2º) Deploravelmente os imortalistas da SBB forçaram sobremodo a tradução do texto em lide, pondo em dificuldade os defensores do estado de inconsciência na morte. A versão Almeida Atualizada, mais do que qualquer outra, é no texto em foco arbitrária, aliteral, destituída de fundamento gramatical.

3º) Adam Clarke é de parecer que Jó estaria fazendo alusão a esses antediluvianos sepultados sob as águas, bem como aos grandes animais aquáticos. Nesse caso, o termo hebraico refaim (forma aportuguesada), primacialmente sombras, tomaria a conotação de espectros, figuras monstruosas, criaturas gigantescas, interpretação viável semanticamente. O livro de Jó é estilisticamente poético, o que permite dar ao texto em discussão sentido alegórico, figurativo.

4º) Dessa investigação exegética podemos inferir que é inescrupulosa pretensão querer que o texto diga o que não diz. Lançar mão de Jó 26:5 para respaldar a doutrina da imortalidade natural do homem é atestar falta de conhecimento de causa. As evidências textuais não favorecem, e muito menos admitem a inserção, ou melhor, a intromissão de palavras na construção original. A paráfrase só é permitida quando seu sentido não se desvia da fonte primária. Tradução é uma coisa; interpretação é outra. Unicamente a partir da versão literal é que se pode dar uma interpretação abalizada, coerente ou pelo menos mais confinada com a verdade, com a realidade dos fatos”.

Quero concluir esta análise com um apelo, que é ao mesmo tempo um desejo:

Espero que, em edições posteriores, os esclarecidos amigos da Sociedade Bíblica reconsiderem este verso e o apresentem com uma tradução mais harmoniosa com o original hebraico.

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Sobre o Autor
Prof. Leandro Quadros

Com mais de 20 anos de ensino sobre a Bíblia em igrejas, congressos e programas de TV e rádio, desenvolvi diversos conteúdos – e-books, audiolivros e cursos; para compartilhar os meus aprendizados e tornar acessíveis temas teológicos complexos.

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